Nem café, nem chá. Quando se perde a fé, perde-se também o
paladar. Nada, gosto algum. A morte não veio acompanhada de aroma algum. A
morte não veio, talvez tenha sido este o erro. A lâmina esquentava no bolso de
traz da calça apertada, enrolada num grande pedaço de tecido revestido de
couro, que há dias na última gaveta do armário cheirava a boi morto. O sangue
escorreria melodicamente, seria bonito de se ver. A dor arderia aos olhos,
banharia os olhos de arrependimento e, num último ato, mancharia o tapete branco
de veludo da bisavó, sua única herança, a única que se sujeitou a aceitar. Era
bonito o tapete, era de se admirar, e a textura, que textura! Era um orgasmo de
textura, só provando, daquelas sensações únicas. Se recusa a deixar que a
comparem com qualquer outra textura do mundo, por mais mesquinha que fosse, sua
textura sempre seria a melhor, a textura da vovó. Fora tão sincero, discreto,
nada planejado, ou talvez houvesse sido planejado. A verdade é que todos os
dias seriam bons dias, todos se encaixariam no plano, bastasse a coragem de
executa-los, bastasse a vontade, e então, não seriam mais planos. Alias, agora,
depois, seriam realidades, ou passado. Ninguém se lembraria daquela data, de
uma forma ou outra, nem ela se lembraria, até porque, talvez, agora, estaria
morta.
- E os rolos? – soou o alarme da salvação.
O que? Que barulho é esse? Porque? Tinha que ser agora?
Alias, que merda é essa? Talvez devesse sorrir, seria essa a deixa pra respirar
mais uma vez antes do corte final? Bom, não. Que susto! Olhos intactos no
tapete, que agora escondia a lâmina, tão bem, por debaixo dos olhos
amedrontados e do suor latente. Restava sorrir, ou gargalhar, histericamente,
como se o mundo lhe desse uma nova chance, inédita, essa que vinha com uma
piada de presente. Só restava, histericamente, novamente, sorrir. Mas agora
sorrir com os olhos, com corpo e alma. Como se alguém lhe libertasse a visão,
libertasse seu corpo à vida. Acordaram-na no momento da queda, não há porque se
assustar.
- Rolos? – sorriu, riu, gargalhou.
Que merda, que sonho, que vitória. Os rolos a salvaram de si
mesma, ele a salvou de si mesma. Ele? Quem? Um amigo. Amigo, desde quando
amigos? Porque amigos? Amigos, somente. Um conhecido, recém-chegado à família,
um novo rosto pintado de branco, com nariz vermelho. Um poeta da alma. Agora
sim, sorrir, sem histeria, só sorrir. Talvez devesse agradecer, trufas de avelã,
talvez. Distante aos olhos e mãos, trufas não gostam de se expressar. Um
obrigado era o bastante. Um muito obrigado. Ou, talvez, um porquê. Porque?
Porque não deixou que aquela alma vingasse a si própria. Porque não cessar o
sofrimento? Porque não tardar? Optou por tardar, ou talvez cessar, mas só o
sofrimento. Só o sofrimento. Questionamentos, não, não agora. Contentou-se em
celebrar o sorriso da menina. Mas na outra mente os questionamentos jamais
cessariam. Jamais. Mudar de assunto, isso, mudar o tema.
- Déficit.
- Oi?
- Atenção... déficit.
- Sim, sei. Tenho quando bebo ou me canso, ou me
desapercebo.
Déficit, mil assuntos pendentes, déficit. O repertório, sem
dúvidas, era bem mais extenso, mas não, não. Déficit era perfeito, ao menos pro
momento, ao menos pra si mesma. Era real, pense por esse lado. Talvez devesse
agradecer, mas agradecer significava ter de lhe contar todos os seus segredos
nada ocultos, ter de quebrar o protocolo e ser a louca, mais uma vez, mais uma.
Talvez fosse melhor esquecer os 2 últimos
minutos.
- Talvez me chame de louca, mas devo agradecer, por... por
me salvar. - Salvar? Tem certeza que
quer usar essa palavra? Parece tão dramático.
Reeditemos.
- Talvez me chame de louca, mas você acaba de evitar algo
desastroso.
- O que ia fazer?
- Cortar algumas veias – entristeceu-se, digamos que a
verdade, nua, crua, dói.
- Tá louca? Nem pense nisso.
- Sabia que ia me chamar de louca.
- Já fiz isso, sei como é.
- Eu também sei como é.
Sabia como era os dois lados. O lado de quem escuta a
notícia, e o lado de quem se desespera por ajuda, por compaixão. Já esteve em
ambos os lados duas, quatro, seis vezes.
- É!
- Não, não é! – mil coisas pra dizer, mil sonhos descritos e
mil palavras de consolo e coragem. Seu repertório era extenso, era dramático,
era sincero. Real, intenso, era.. real. E ouvir, e ler, e sentir tudo aquilo era
mais real ainda.
- É, realmente não é, não.
Ouviu, calada, pensando em repetir o ato enquanto ele discursava
sobre novas perspectivas. Porque ele era tão grande? Porque é? Como consegue se
sobressair? Porque ela se sentia tão pequena perto da sua coragem?
...
- Café e chá, grandes qualidades literárias – riu avesso à
própria piada.
- Tão previsível, não?
- Não, é você. Deve ser o bastante.
- É!
- Pimenta!
- Oi?
- Pimenta. Talvez devesse botar pimenta pra ver o que dá,
pra arder, pra ser mais intenso.
Pimenta? Sim, pimenta. Um novo tempero, pra um novo início.
Mas pimenta, pimenta é tão, é tão cotidiano. Mas sim, pimenta, gostou da ideia.
Mas como juntar pimenta ao café? E ao chá?
A resposta não estava na junção. Era hora de reprimir o uso,
praticar o desapego. Ser o outro lado, a outra face esquecida. Era hora de
evitar o café, desconsiderar o chá. Hora de comer, hora de temperar. Nada de
sal. Pimenta, pimenta e nada mais.
Destino.
Oh!
Mas mesmo no auge da sua injustiça,
sabe ser justo
e justificar
toda a injustiça
com um punhado
de amor.
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